François Noël, Professor Titular de Farmacologia, ICB-UFRJ
Colaborador do Farmacologia Informa
Após a enorme expectativa criada com a cloroquina e seu derivado mais seguro (hidroxicloroquina) (1), um recente artigo australiano relatando o efeito inibitório da ivermectina sobre a replicação do SARS-CoV-2 em cultura de células (2) teve grande repercussão. A ivermectina é uma lactona macrocíclica de amplo espectro de atividade, sendo eficaz contra muitas espécies de parasitas como os nematódeos responsáveis pela oncocercose e filariose linfática, de grande uso também em medicina veterinária (3). A ivermectina foi obtida por pequena modificação estrutural da avermectina, uma substância natural isolada de Streptomyces avermitilis, e rendeu aos seus descobridores William Campbell e Satoshi Õmura o prêmio Nobel de Fisiologia ou de Medicina de 2015. O referido artigo de Caly e colaboradores (2) recebeu uma atenção generalizada em sites médicos nos EUA, que frequentemente se referiam à ivermectina como uma cura potencial para a infecção por coronavírus, de modo que tanto o FDA como o Editor Chefe da revista Antiviral Research tiveram que publicar um aviso de cautela (4). De fato, sabemos que resultados de estudos realizados in vitro, no caso em cultura de células, precisam ser confirmados em Estudos Clínicos Controlados Randomizados (ECCR), que são os fundamentos da medicina baseada em evidências (1). Tais estudos envolvem muito mais aspectos farmacológicos do que os estudos preliminares in vitro, como farmacocinética, busca de doses que garantam a otimização da relação risco-benefício e avaliação do tempo mais adequado para a administração do medicamento, dependendo do estágio da doença. É justamente este tipo de alerta que foi feito a respeito do estudo australiano quando foram levantados aspectos tanto de farmacocinética como de segurança (4):
A atividade antiviral observada in vitro ocorreu em concentrações muito mais altas (CI50 ≈ 2-3 μM) do que as concentrações nanomolares efetivas contra muitas espécies de nematódeos (3), obtidas após uma dose usual de 200 µg/kg. Essa concentração micromolar também é maior que o pico plasmático terapêutico (cerca de 40 nM) medido em humanos tratados com uma dose padrão de 150 μg/kg para o controle da oncocercose; o mesmo ocorrendo após uma alta dose diária (600 μg/kg) onde um Cmax de 0,12-0,14 μM foi obtido (5).
Como a ivermectina é um inibidor não seletivo de três importantes ATPases do tipo P de mamíferos em concentrações micromolares semelhantes (CI50 ≈ 6 - 17 μM) (6), precisamos nos preocupar com possíveis efeitos adversos importantes que esse fármaco poderia produzir nas altas doses que seriam necessárias para o tratamento de pacientes com COVID-19.
Em função disso, um estudo de fase 1 é absolutamente necessário antes do uso da ivermectina para COVID-19, uma vez que uma metanálise recente concluiu que não há dados suficientes para apoiar uma recomendação para seu uso em doses maiores que as aprovadas (7). Baseando-se também em simulações farmacocinéticas, Schmith e colaboradores (8) concluem de forma semelhante que o reposicionamento de fármacos para uso no tratamento com COVID-19 é uma estratégia ideal, mas só é viável quando a segurança do produto foi estabelecida em experimentos realizados com doses clinicamente relevantes.
De forma inesperada em função do alerta acima, há um relato recente de estudo observacional retrospectivo, com várias limitações, indicando que uma única administração de ivermectina em pacientes hospitalizados com COVID-19 estaria associada a uma menor mortalidade e tempo de internação hospitalar (9). Pelas limitações deste estudo, os próprios autores reconhecem que será necessário confirmar (ou não) estes dados através de um estudo clínico controlado e randomizado.
Como conclusão, precisamos nos preocupar com a facilidade com que se criam expectativas quanto à eficácia de fármacos propostos para enfrentar a pandemia do COVID-19 e não abrir mão de uma análise crítica dos numerosos estudos que estão sendo postados como “preprint”, sem ter havido a clássica avaliação pelos pares.
Referências
1. Noël F, Lima J. Pharmacological aspects and clues for the rational use of Chloroquine/Hydroxychloroquine facing the therapeutic challenges of COVID-19 pandemic. Lat. Am. J. Clin. Sci. Med. Technol. 2020, 2:28–34.
2. Caly L, Druce JD, Catton MG, Jans DA, Wagstaff KM. The FDA-approved Drug Ivermectin inhibits the replication of SARS-CoV-2 in vitro. Antiviral Res. 2020, 178:104787.
3. Geary TG. Ivermectin 20 years on: Maturation of a wonder drug. Trends Parasitol 2005, 21(11):530–2.
4. Bray M, Rayner C, Noël F, Jans D, Wagstaff K. Ivermectin and COVID-19: a report in Antiviral Research, widespread interest, an FDA warning, two letters to the editor and the authors’ responses. Antiviral Res. 2020, Apr 21:104805.
5. Smit MR, Ochomo EO, Waterhouse D, Kwambai TK, Abong´o BO, Bousema T, et al. Pharmacokinetics-Pharmacodynamics of High dose Ivermectin with
Dihydroartemisinin-piperaquine on Mosquitocidal Activity and QTprolongation (IVERMAL) . Clin Pharmacol Ther 2019; 105(2):388-401.
6. Pimenta PHC, Silva CLM, Noël F. Ivermectin is a nonselective inhibitor of mammalian P-type ATPases. Naunyn-Schmied Arch Pharmacol 2010; 381:147-152.
7. Navarro M, Camprubí D, Requena-Méndez A, Buonfrate D, Giorli G, Kamgno J, et al. Safety of high-dose ivermectin: a systematic review and meta-analysis. J Antimicrob Chemother 2020; 75(4):827-34.
8. Schmith VD, Zhou JJ, Lohmer LR. The Approved Dose of Ivermectin Alone is not the Ideal Dose for the Treatment of COVID-19. Clin Pharmacol Ther. 2020 May 7. doi: 10.1002/cpt.1889.
9. Patel AN, Desai SS, Grainger DW, Mehra MR. Usefulness of Ivermectin in COVID-19 Illness. Preprint: https://ssrn.com/abstract=3580524
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