Profa. Dra. Lucienne da Silva Lara Morcillo - UFRJ Campus Fundão
Em 1898, Tigertedt & Bergman [1], reportaram que eles tinham obtido a partir do rim de coelhos extratos que promoviam o aumento da pressão arterial destes animais quando injetados pela via intravenosa, que foi chamado de renina. Era o início de uma investigação que culminou, na década de 1960, com a demonstração de que a renina, ativa uma cascata de reações em cadeia de quebra de proteína e peptídeos que ocorre no sangue, denominada Sistema Renina-Angiotensina (RAS). Classicamente, a renina secretada nas células juxtaglomerulares renais cliva o angiotensinogênio, dando origem à angiotensina I (Ang I). A seguir, a Ang I é clivada pela enzima de conversora de angiotensina (ECA) formando o octapeptídeo angiotensina II (Ang II) [2]. A Ang II circulante se liga a seus receptores específicos de membrana (AT1 e AT2) ativando mecanismos fisiológicos relacionados ao controle da pressão arterial (Figura 1). Distúrbios neste sistema, que culminam com o aumento da atividade pressórica, estão envolvidos na fisiopatologia da hipertensão arterial. Baseado neste conhecimento, dois anti-hipertensivos são amplamente utilizados na clínica: os inibidores da ECA (iECA: captopril e derivados, década de 1960) e os bloqueadores do receptor AT1 (BRA: losartana e derivados, final da década de 1980) [3,4]. Estes fármacos bloqueiam, respectivamente, a formação de Ang II ou a sua ação sobre o receptor AT1, que tem como principais ações o aumento da pressão e a retenção de sódio [2].
A aparente simplicidade do RAS que acontece no sangue é apenas a ponta de uma complexa rede de peptídeos menores que a Ang II com diferentes propriedades bioquímicas e atuação em diferentes tecidos (Figura 1). Isso demonstra que o centenário senhor RAS ainda tem muitos mistérios escondidos para nos revelar. Com a pandemia provocada pelo novo coronavírus (SARS-CoV2), um dos braços desta complexa rede tem tomado notoriedade. Esse braço envolve a Enzima Conversora de Angiotensina 2 (ECA2), que também é a molécula que permite a entrada da partícula viral na célula hospedeira [5].
Em 2000, logo após completar 100 anos da descoberta do RAS, a ECA2 foi clonada. Esta enzima tem semelhança estrutural a ECA. No entanto, enquanto ECA cliva Ang I em Ang II, ECA2 cliva um único resíduo de Ang II para gerar Ang(1–7) (Figura 1) [6]. ECA2 se localiza predominantemente no coração, rins e testículos, e, em baixos níveis no e o pulmão [6]. A manipulação farmacológica ou genética do braço ECA2/Ang-(1-7) e seu receptor específico, MAS mostrou que este possui efeitos cardiovasculares e renais opostos as ações mediadas pelo braço ECA/Ang II/AT1[7,8].
Conforme mencionado acima, ECA2 foi identificada como o receptor para SARS-CoV1 e SARS-CoV2 [5]. E o que isso significa? Pesquisas anteriores ao SARS-CoV2, que tinham o objetivo de entender a síndrome respiratória causada pelo CoV1, demonstraram que camundongos que não expressavam o gene da ECA2, uma vez infectados com o SARS-CoV1 eram resistentes a infecção, não desenvolviam inflamação pulmonar e a síndrome respiratória [9]. A hipótese é de que o centenário RAS desempenha um papel central no controle do processo inflamatório e, portanto, da doença respiratória aguda grave. Ao longo da última década, tem sido mostrado que a Ang II media uma série de eventos inflamatórios através da ativação do receptor AT1 [10]. Tem sido bem aceito que a mortalidade induzida por SARS-CoV2 é promovida por dois mecanismos: (i) a endocitose de SARS-CoV-2 ligado à ECA2 que promove o acúmulo tecidual de Ang II em detrimento de Ang-(1-7), seu contrarregulador fisiológico [11] e (ii) acúmulo tecidual de Ang II como indutora da intensa inflamatória [10].
No cenário da infecção por SARS-CoV2, qual seria a função dos anti-hipertensivos que atuam inibindo RAS (iECA ou BRA)? Para responder esta questão 2 hipóteses foram elaboradas. A primeira seria de que a administração de iECA ou BRA poderia aumentar a abundância de ECA2 e, assim, aumentar a entrada do vírus [12]. A inibição de ECA também aumenta os níveis de bradicinina que é um agente inflamatório [13]. Na segunda hipótese, a diminuição da ação de Ang II (seja pela diminuição do seu conteúdo ou bloqueando a ação no receptor) atenua o processo de lesão pulmonar. Esse efeito atenuador seria potencializado uma vez que o bloqueio de AT1 desloca Ang II para a formação de Ang-(1-7) e a ativação do receptor Mas, que atenua a inflamação e fibrose pulmonar [13]. Vale a pena ressaltar que existe a preocupação de que a retirada abrupta dos inibidores do RAS possa ser prejudicial em certos pacientes de alto risco com Covid-19 conhecido ou suspeito causando instabilidade clínica e resultados adversos à saúde [14]. Desta forma, é recomendado que os fármacos que atuam em RAS devam ser continuados em pacientes com condições estáveis, positivos para Covid-19, sendo reavaliados com a progressão da doença [13,15,16]. Recentemente Zhang e colaboradores mostraram que entre 1128 indivíduos hipertensos internados no hospital devido à infecção por SARS-CoV-2, indivíduos que usam iECA ou BRA eram menos propensos a ter doença grave [17]. Atualmente estão registrados 10 ensaios clínicos randomizados com antagonistas do AT1R [18].
Quais são as outras ferramentas farmacológicas que tem como alvo o dueto ECA2-SARS-CoV-2?
Vacina que gera anticorpos contra a proteína Spike: O desenvolvimento de uma vacina baseada na subunidade 1 da proteína spike reside no fato de que ela se liga a ECA2para que entre na célula hospedeira [19].
Inibição da protease transmembranar serina 2 (TMPRSS2): Hofman e colaboradores [20] demonstraram recentemente que a TMPRSS2 é essencial para a ativação da proteína spike e ligação a ECA2 [21]. O inibidor desta protease, o mesilato de camostat, foi aprovado no Japão para tratar doenças não relacionadas, demonstrou bloquear a atividade do TMPRSS2 [22].
Forma solúvel de ECA2: A forma solúvel da ECA2 não apresenta o domínio que ancora a enzima à membrana celular e circula no sangue em pequenas quantidades [23]. Tem sido proposto que a forma solúvel da ECA2 se liga ao SARS-CoV-2 diminuindo sua disponibilidade para a ECA2 membranar. Desta forma, o vírus não entra na célula e, portanto, não se replica, diminuindo a carga viral [24,25].
As abordagens moleculares para o estudo deste sistema centenário oferecem novas possibilidades para uma melhor compreensão da fisiologia e fisiopatologia do RAS e para o desenvolvimento de novos alvos terapêuticos. Passado mais de um século de estudo, o RAS emerge como um dos principais mecanismos da fisiopatologia da covid-19.
Figura 1. Visão geral simplificada do sistema renina-angiotensina (RAS). O angiotensinogênio é clivado pela renina que gera a angiotensina I (Ang I), que é então formada em angiotensina II (Ang II) através das ações da enzima conversora da angiotensina (ECA). O receptor AT1 apresenta maior afinidade para Ang II, constituindo o eixo clássico do RAS. Este eixo promove: vasoconstrição, inflamação, estresse oxidativo, apoptose e proliferação celular. A Ang II também pode ativar o receptor AT2 e pode ser metabolizada pela enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2) para gerar Angiotensina-(1–7). Ang-(1–7) ativa o receptor Mas. Ang-(1-7) pode ser formada pelas ações da ECA ou neprilisina (NEP) na angiotensina-(1-9) ou angiotensina I. AT2R e ECA2/Ang- (1-7)/Mas formam o “eixo alternativo” e sua ativação contra-regula os efeitos prejudiciais induzidos pelo AT1, levando a vasodilatação, angiogênese e prevenção de inflamação, estresse oxidativo e apoptose. Retirado e traduzido de:Arroja, M.M.C., Reid, E. & McCabe, C. Therapeutic potential of the renin angiotensin system in ischaemic stroke. Exp & Trans Stroke Med 8, 8 (2016) (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/).
Referências:
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5. Science 2005; 309:1864-1868.
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7. Pflügers Archiv. 2013; 465:79-85.
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10. EMBO Mol Med. 2010; 2: 247-257.
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15. Hypertens Res. 2020; 1‐7.
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18. https://clinicaltrials.gov/ct2/results?cond=COVID+ARB&term=&cntry=&state=&city=&dist= (ultima atualização em 05/06/2020).
19. Nat Rev Microbiol. 2009; 7:226‐236.
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22. J Virol, 2012; 86:6537-6654
23. Cell 2020; 181: 905-913.
24. Kidney Int. 2020; 97, 1091-1093.
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